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Era
o invunche!
A
criatura saltou para Pelume com um grunhido, as garras esticadas
na direção de seu pescoço. Felizmente a terceira perna do arauto
tropeçou no barco e o monstro caiu longe do menino, que agarrou o
Nalladigua, pronto a usá-lo para se defender. No último momento,
entretanto, titubeou. O invunche era medonho, mas bastou olhar seus
olhos para Pelume compreender que ele um dia fora humano. Em seu
coração acendeu-se uma chama de piedade. Foi Misqui quem saltou
sobre a criatura e a jogou na água. De qualquer forma, era tarde:
tinham sido descobertos!
De
algum lugar trás deles, ouviram aquele assobio maldito e medonho
que tanto medo lhes havia causado no Pampa aberto. Os itinga
relincharam horrorizados e, por um instante, cada um quis correr em
uma direção. O grupo se deteve. O machí surgiu, montando aquela
coisa que comandava, velha, horrenda, viscosa. O piguchén avançou.
Tinha umas asas disformes como que de morcego, que ajudavam a
prolongar seu salto. Com um golpe da garra afiada, o monstro
destroçou os arreios de um dos itinga que puxava o barco da frente e
cortou o pescoço do nobre animal, que caiu com um relincho de
agonia.
Saídos
do susto, Abapera e Nhanderiquei se moveram em direção ao piguchén.
A flecha do índio zuniu certeira, dourada, e cravou-se perto do olho
saltado da criatura, que ganiu, surpresa. O machí atacou. O
feiticeiro movia-se de maneira extravagante e sussurrava, sibilando
sem parar. Quando menos esperava, Pelume sentiu uma ardência no
braço esquerdo. Olhou, surpreso: um vergão desenhava-se ali, como
se tivesse levado uma chicotada. Esse era um dos piores poderes do
machí: ferir seu inimigo à distância!
O
cavalo da canoa da frente, que agora estava sozinho, tentava escapar
rumo ao centro do rio, mas as águas agitadas pelo poder do
feiticeiro ameaçavam tragá-lo. Ele sobreviveria à súbita fúria
das águas, com certeza, mas Nimbó não. Por isso, Nhanderiquei
saltou sobre o animal, arrebentou as rédeas de couro com as mãos e
empunhou seu arco e flecha.
–
Pule para o barco de Abapera! – ordenou o primogênito com voz
possante para o guarani. Quando o barco, arrastado pela corrente,
passou perto de Pelume e Misqui, o garoto saltou para ele sem
hesitar. A canoa, cheia de gente, oscilou perigosamente, ameaçou
adernar, depois endireitou-se, mas estava tão carregada que as ondas
entravam facilmente pela proa. Abapera fez a única coisa que lhe
restava fazer. Atirou as rédeas dos itinga nas mãos de Nimbó,
passou a mão na cabeça de Pelume e saltou para as macegas da
margem.
–
Vão embora! Para o norte! Agora! – ordenou, impedindo uma
investida mais ousada do piguchén e do machí, cuja face, horrenda,
desfigurada pelo corte do anzol de Pelume, rosnava encantamentos. O
golpe da lança do gaúcho resvalou no pelo curto que cobria o bicho
monstruoso e a criatura voltou-se para ele arreganhando os dentes.
Com uma bocada estraçalhou a lança e Abapera ficou apenas com um
facão para defender-se. Nhanderiquei tentou acertar o machí pelo
outro lado, mas neste momento uma sombra saltou sobre ele. Era o
invunche!
–
Seu aprendiz de feiticeiro! Passe-me o corno dourado! – vociferou o
machí, saltando do dorso do piguchén e correndo na direção do
barco de Pelume.
–
Não tenho nada que você possa querer! – gritou o menino. No salto
seguinte, o machí estava dentro do barco. Um gesto seu e a água
cresceu feito enchente.
–
Não voltarei a pedir! – berrou o bruxo e um arranhão ainda mais
profundo cortou o peito do menino. Pelume cruzou o Nalladigua diante
de si, sem pensar, e a madeira frágil de alguma maneira funcionou
como escudo. O arranhão deteve-se pela metade e o homem grunhiu.
Neste momento, uma onda maior bateu contra o barco e arremessou
Pelume aos pés de Nimbó, que deu rédea aos cavalos. O tranco do
barco fez com que o machí se desequilibrasse e caísse no rio
revolto. O feiticeiro ainda conseguiu agarrar a ponta do Nalladigua,
na queda, e por pouco não o levou consigo, mas Pelume o puxou do
outro lado, com força. Então as águas embranqueceram de súbito e
o corpo do machí foi jogado contra o piguchén, que continuava
enfrentando Abapera junto ao rio. Nimbó não esperou para ver o que
ia acontecer: gritou para os itinga e ganhou a corrente do rio rumo
ao norte, mergulhando no anoitecer.
Tinham
conseguido avançar até uma curva e a noite crescente ocultava-lhes
o local do embate. Inesperadamente o céu tingiu-se como o alvorecer,
e por um instante pareceu que o Sol se acendera em pleno campo.
Ouviram uma grande explosão e um grito
–
O que foi isso? O que aconteceu? – perguntou Misqui, temerosa.
–
Vamos voltar! Pode ser Nhanderiquei! Pode estar pedindo ajuda! –
gritou Pelume.
Nimbó
freou os itinga com força. Olhou para trás a tempo de ver a luz
dourada se apagar.
–
Ayú!
Era
Nhanderiquei!
– gemeu o guarani.
Quis
voltar. Chegou a dar a volta. Mas se deteve. Um assobio frio e
perverso varreu o campo seguido de um silêncio de morte.”
O
Nalladigua - Os
Sóis da América - vol.1 -
Simone Saueressig